segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Um Apólogo

Machado de Assis



Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa.

— Decerto que sou.

— Mas por quê?

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você é imperador?

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...

A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:

— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!


Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora Ática - São Paulo, 1984, pág. 59.

Filas: Teste de paciência


Até hoje eu não encontrei alguém que tenha prazer de enfrentar uma fila. É preciso enfrentá-la em diversas situações, é claro. Porém, em algumas, vejo que salta em meus nervos uma vontade de explodir e sair correndo, ou pedir para que a fila ande mais rápido, ou mesmo furar uma fila. Mas a vontade não pode estar atrelada sempre à ação, senão sairemos cometendo atos de absoluta falta de respeito, ferindo a ética e os bons costumes.
Neste fim de semana, tive uma aula de filas. Eu e minha esposa resolvemos curtir o show de uma banda que gostamos muito. Pegamos um voo e fomos. Chegando ao local, a (des)organização do evento que contava com cerca de 30 mil pessoas, disponibilizou apenas uma entrada para o público. Uma fila enorme se formou e sem exagero, algo em torno de umas 1 ou 2 mil pessoas estavam na fila que deveria ter cerca de uns 3km ou mais. Fiquei pensando, onde estamos? Por que as pessoas nesse país não tentam fazer a coisa certa, com um pouco mais de organização e respeito? PQP! Desculpe-me pelo xingamento, mas na hora eu xinguei. Observei que de certa forma, a grande maioria respeita a fila e tem um mínimo de senso de coletividade, se é que posso pensar assim. O público entrou, imagino que sem incidentes e as coisas deram certo.
Na volta para casa, milhares de pessoas querendo transporte, táxi, principalmente. Aí, meu amigo, não há fila! Cada um por si e a parte mais egoista, animal e sem inteligência começa aparecer. Quem quiser que seja mais esperto que o outro.
Novamente no aeroporto, vejo uma fila inacreditável para entrar na sala de embarque. Uma fila que jamais vi naquele local que tanto já passei. Uma fila que preenchia o saguão do aeroporto. Eu perguntei para minha esposa: O que está acontecendo?

***
Por que eu estou comentando isso? Ah, esse é um blog de bipolares dia a dia! Ou seja, aconteceu, sua reação pode ser adversa, ou não. Depende de como você está lidando com o seu transtorno, ou como diz minha psicóloga, adoecimento.
Quando eu ainda não sabia muito bem o que eu tinha com relação a minha saúde, ou fragilidade mental, em uma fila dessas, todos os sons externos começavam a me invadir. Aquilo me irritava de tal maneira que eu tinha vontade de sair gritando. Eu sentia que poderia ter um dia de fúria, como no filme. Aquilo me incomodava muito. Eu sofria com aquela sensação. A inquietude, o calor, a impaciência, irritabilidade...
Saber do meu transtorno me fez enxergar o que me incomoda e ainda me dá ferramentas para poder enfrentá-lo. O pior inimigo é aquele que a gente não vê.